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segunda-feira, 5 de novembro de 2012


Cenas e textos – Carmen Mee

Primeira cena individual 
Sozinha no meio do palco, eu falo:
Este corpo nasceu inconsciente de si mesmo. Com o tempo fui percebendo seu tamanho, sua força, velocidade... Recebi esse corpo sem manual de instruções, claro. Aceitei essas formas com suas cores e texturas mesmo não sendo as minhas preferidas. Mas confesso que adequei o meu corpo à minha vontade, me forcei a fazer coisas, me manipulei. Mas o corpo é uma realidade limitada. E apontando praquela direção (movimento apontando com o braço todo pra frente) eu vi no meu dedo, bem na ponta, dando a volta pela palma, pelo braço, me contornando o corpo inteiro: uma fina linha sensível que se faz de fronteira com o ar
Em seguida enxergo algo um pouco distante de mim, do lado direito. Parece ser o meu corpo fora de mim, longe de mim. Chamo por ele três vezes virando apenas a minha cabeça e um pouco do tronco, o resto do meu corpo está praticamente petrificado de medo – menos os braços, que ficam soltos e fazem um pequeno movimento pendular quando minha cabeça se volta pra frente:
Corpo. Corpo. Corpo?
Na última chamada minha cabeça permanece virada pra trás e meu corpo todo começa a cair pra frente, como um tronco de uma árvore quando acaba de ser cortada, mas antes de cair giro para o lado esquerdo, como se um redemoinho tivesse passado por mim. Assim que paro, enxergo novamente o corpo, porém dessa vez com alegria por tê-lo encontrado. O chamo, como se chamasse um cachorrinho, e ele vem correndo e pula em cima de mim, em si mesmo.
Assim que ocorre essa fusão entre “corpo e espírito”, eu caio no chão. Permaneço ali por algum tempo, imóvel. Quando acordo, não sinto mais minhas pernas, elas se transformaram em um peso morto que tenho que carregar de agora em diante. Por isso uso os braços para me deslocar pelo espaço. Raivosa, com um apito dou ordens aos que passam. Esgotada e de frente pra plateia, deixo o apito cair e digo:
Não se levanta nem precisa levantar-se/ Está bem assim. O mundo que enlouqueça,/ o mundo que estertore em seu redor./ Continua deitado/ sob a racha da pedra da memória.” (Carlos Drummond de Andrade).
Quando pronuncio a última palavra me arrasto pra trás, me enrolo e levanto apontando o dedo para onde eu estava e dou uma bronca:
Não pode fazer isso! Fica quieta! Tira a mão do cabelo. Senta direito, arruma essa roupa, menina!
A medida que falo vou dando passos para trás. Depois que digo a última coisa, continuo indo para trás, mas vou marchando, com firmeza e dureza. Em seguida paro, e jogo minha perna pro lado, como um passo de tango, e depois, enquanto volto a perna, meu corpo vai amolecendo e criando vida, começa a sambar, a girar e depois a correr se sentindo finalmente livre. Depois do êxtase de sentir essa liberdade, digo confiante:
Quero romper com meu corpo, quero enfrentá-lo, acusá-lo, por abolir minha essência” (Carlos Drummond de Andrade).
Olho pra trás e vejo meu corpo mais uma vez, e já sem certeza falo:
mas ele sequer me escuta e vai pelo rumo oposto” (Carlos Drummond de Andrade).
Dito isso, me viro para o lado esquerdo do palco e vou embora.


A primeira fala dessa cena antes dela ter sido reformulada, como eu tinha apresentado antes:
O corpo nasce inconsciente; logo ele se encontra, se descobre. Ele toma formas, se mostra... Recebe-se o corpo, mesmo não sabendo do corpo. Aceita o corpo, mesmo não querendo o corpo. Molda-se o corpo, mesmo não vendo o corpo. O corpo é uma realidade limitada. Limitado pelo seu contorno, pela sua fronteira com o espaço, ele se limita em si mesmo. O corpo é usado, é forçado, é adequado ao que ele próprio impõe a si, ao que ele acredita de si, ou ao que ele cria de si mesmo. Criar... Criar, inventar, correr, ir, subir, pular, cair, girar, gritar! Limitar! Ele limita, o corpo limita. Sim, e ele se limita e assim ele se esconde



Minha parte do texto da cena com a Clarice e a Renata
Meu corpo é...

Meu corpo é feito de pele, de massa, de água, suor. Meu corpo tem alma.
Meu corpo sente cansaço, esforço, saudade e amor. Meu corpo sente meu corpo...
Meu corpo pensa que é grande e, às vezes, pequeno. Se esconde em si mesmo e se eleva ao céu.
Tem medo de mim, tem medo de si.
Quando eu me toco me sinto normal. Sinto meu corpo e sinto que sou eu, sinto que sou ser.
Por isso meu corpo deseja que você entenda que meu corpo faz parte de mim, mostra quem sou eu e ao mesmo tempo esconde, esconde a essência.

Meu corpo (agora) é...

Meu corpo é feito de terra, de carne, pele, pelos e poros. De água, lágrimas, gotas de suor. De ar, oxigênio, sussurros e bocejos. De fogo, de força, impulso. A chama que move os meus passos.
Meu corpo sente e sorri. Sente sempre o impacto dos olhares, sente sede todas as manhãs, sente sono, preguiça, cansaço. Sente a fome que me come por dentro, sente o beijo, o desejo, a vontade de ficar. Sente e treme, estremece inteiro, balança e se deixa levar, sente a onda me arrastar pro mar.
Meu corpo pensa no seu vasto interior, no seu lado desconhecido, adormecido. Pensa em toda a sua potencialidade, genialidade, todo o seu poder que pode ser abraçado ou deixado de lado. Pensa no esconderijo do pensamento, pensa na fuga, no obscuro. Pensa nas suas possibilidades de expansão e de contração, pensa no que pode se transformar.
Tem medo de se perder, se deixar, abandonar-se. Medo de não me reconhecer. Medo daquele seu olhar de reprovação, medo de que você me machuque, de que não me compreenda e me deixe de lado, me passe pra trás.
Quando eu me toco me sinto cuidada, me sinto amada, preciosa. Sinto minha pele macia, cheirosa, sinto arrepios subindo, vontade de sorrir. Sinto tantas coisas no meu corpo e com meu corpo, no corpo todo ou em suas partes, que sempre me descubro um pouco mais.
Por isso meu corpo deseja que você entenda que meus olhos te mostram só o que você pode ver. E que é melhor você me abraçar do que tentar desvendar o lado escondido do meu interior.     

Cena em dupla – Carmen e Guy (meu texto)

O seus olhos são tão bonitos que me fazem sorrir.
Meu corpo tá impregnado de você, do seu cheiro, vai embora. Carrega os teus restos daqui e essa sua alma cinza. Para de me olhar com essa cara de bosta que você tem e essa boca podre que fede a lixo, vai embora... Se afasta de mim, não tá percebendo que o meu corpo repele o seu, que eu fico com nojo de olhar pra você e ver o que você fez consigo mesmo, o monstro que você construiu, que você adestrou de dentro de si? A sua pior parte é a que você mais mostra. Sinto vergonha por você (ou por mim...). Fecha os seus olhos, leva a tua vergonha daqui junto com essa catinga que sai daí de dentro; ninguém merece receber a frieza desse olhar perdido.
Meu corpo me impede de ser a Clarice!


Texto da carne

Minha carne pesa como a cruz
E quanto mais eu a carrego,
Mais eu me afogo nesse mar
De culpas inventadas...

Outros textinhos:

Minha carne pesa
Mas quando eu me toco
É como se não existisse peso nenhum.

Minha carne é pesada como uma pedra
E quando eu me revolto
Sinto como se me rachasse a superfície dura.

Vejo nos seus olhos a lua cheia.

Eu sou só mais um
Pedaço de carne
Que arde
Ao receber seus olhos
Queima por dentro

Seca, minha pele se estica e me rasga, sorrindo, enquanto grito, xingo e dou chilique, sinto a dor e o sorriso mudando de cor.

Sou mais mole que minha própria carne...

Perdi os caminhos do corpo

Meu corpo esconde coisas de mim. E tenho percebido que ele sabe se virar melhor do que eu.

A vi de longe. Seus cabelos bagunçados me atraiam, lisos em cima e despenteados embaixo, fios castanhos alucinados sob o sol de setembro. O rosto fino, destacadas sobrancelhas, bocas. Deslizava pelo espaço como se flutuasse, leve. O que pesava era o olhar.

Quero vomitar. A fumaça não sai da minha garganta. Não sai, fica presa na goela irritando, corroendo, apodrecendo, decompondo minha carne. Não consigo parar de comer cigarros.
Cadê meu corpo de ontem?

Cresci na marra. Entendi o funcionamento do meu corpo durante a espichada. Descobri que não vivo sem água, sem alimento e sem ar. Descobri cheiros desagradáveis, marcas, linhas em mim... Tive grande curiosidade sobre eu mesma quando me vi pela primeira vez. Entendi como eu era e porque me olhavam daquele jeito. E me lembro que fiquei tão chateada de não conseguir olhar a cicatriz das costas...

Só posso dizer que senti vergonha do que senti. E senti tantas coisas... Foi um momento raro. Passou tão rápido e foi tão intenso, que eu saí com o peito cheio, a boca cheia de ar.

Percebi meu nervosismo quando me peguei refazendo as palavras repetidamente. O silêncio da noite me deixava tão arisca que qualquer barulho noturno ressoava no meu pescoço com uma brisa fria.
Ficava imobilizada até a perna ficar sem respirar, só mudava de posição quando sentia a dormência.

Enquanto as lágrimas saiam, ardiam os arranhões do meu rosto. O coração estava desesperado batendo no peito, querendo pôr ordem na casa.

Minhas mãos, sem direção, me mordiam como bichos famintos. Me apertavam, procurando um bolso inexistente na pele.

Preciso de algo que acalme meus olhos.
Algo que caiba nos meus olhos.


Não. Não sinto nada. Nenhuma parte.
A não ser que doa.
Ou que eu pense.
E se eu pensar, tenho que mexer,
Pra sentir.


Corpo que treme, que trava, que chama, que anda e que nada
Corpo que chora, que vibra, que briga
Por ira do corpo
Que torto
Não anda
Que solto
Se joga
Que morto
Morto?
Corpo morto tá deitado, parado, imobilizado
Tirado da vida,
Parte do corpo grita,
Gira no último gole do ar.


Meu corpo eu, teu corpo tu
Teu corpo tu, meu corpo eu


Corpo o peito, o pé, a palma
Tira pelo
Come bafo
Solta gases
Suado o corpo anda
Andando o corpo sua
A tua culpa
É não se olhar

O corpo via, agia e reagia
Ela ria
Do seu próprio rosto
Corpo porco
Torto que ria


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