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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

TEXTO CARMEN 1





Vômito da semana de 08 a 15 de outubro
Carmen Mee

Sábado.
Só agora tive coragem de falar alguma coisa.
Eu sou uma fraca.
Não... É como se meu corpo tivesse mole, sem vontade, fraco mesmo... Eu não faço nada, fico solta, frouxa, esparramada num canto comendo porcarias e fazendo coisas qualquer, sem pensar em nada útil, sem prestar atenção no quarto, na varanda ou lá fora, sem falar nada, sem reagir, totalmente apática diante do mundo.
Parece que por dentro me divido em duas partes que brigam pelas minhas ações, que querem ser meu comportamento correto... Eu sou uma terceira parte que assiste a tudo tentando compreender o que se passa. Só quando choro que essas partes se unem para tentar explicar o porquê dessa falha mecânica na máquina Carmen. Só aí eu olho para mim com meus próprios olhos... Como se fosse uma total falta de controle, as coisas saem embaralhadas da minha cabeça, externar não é uma coisa simples para todos... A falta de controle vem dá desunião dessas duas partes – partes que não podem ser definidas como corpo e alma ou carne e espírito, parecem as duas (ou mais) mescladas de coisas reais e oníricas, de realidades e infinitas faces desconhecidas. 
Acho que culpa. Tenho um medo de encara-los de novo, parece que passou muito tempo; no entanto foi como se os dias tivessem passado como horas e sinto como se eu precisasse descansar depois de uma noite muito mal dormida. Como uma ressaca de uma fase ou de um fluxo de acontecimentos, de pensamentos, de sentimentos e sensações, que me deixassem envergonhada de voltar e pedir desculpas. Esse mal estar está tão agarrado comigo que parece que minto e que ninguém fosse acreditar nessas palavras que eu despetalando devagar. Isso já aconteceu comigo, de não acreditarem, por isso essa sensação, eu acho.
Talvez eu tenha cara de mentirosa... Mas a verdade é que minto mesmo, o tempo todo e pra mim mesma principalmente, sou uma péssima eu mesma.
O quero dizê-los é o que se passou nesses últimos dias, nessa semana em que fiquei em casa, o que aconteceu e o que mais queiram saber ao ler este meu depoimento. Hoje é sábado, são três da tarde praticamente, e preciso escrever aqui o que eu senti.
Bom, não aconteceu nada de grave comigo, com meu pai ou coisa de família... não há necessidade preocupação, se a houver; apesar de eu ter sumido, não ter falado nada, a não ser com a Ju na quarta, e, mesmo assim, bem rapidinho, sei que preciso dar uma explicação.
Pois bem, ainda não sei o que houve também. Poderia denominar de momento depressivo, mas seria uma definição muito aberta do que aconteceu comigo. Por que por todo esse tempo, desde o início do ano, que temos dividido momentos meus e seus e temos nos conhecido, todos; eu venho confrontando-me diretamente sobre questões como os meus atos, minhas opiniões (e a falta delas), minha vida, meu caminho e história, onde estou agora, que sou eu e que corpo é esse. Eu sempre pensei nessas coisas e, provavelmente, sempre pensarei. Acontece que agora veio tudo junto... E aquelas duas partes, que tinha dito lá em cima, ficam me criticando, eu me criticando, falando, o tempo todo, o que eu devia estar fazendo. Parece coisa de louco, não descarto essa possibilidade. Pode ser, talvez seja mesmo, que eu seja uma pobre de uma criaturinha traumatizada pelos altos e baixos da vida, demente a coitada. Que tristeza...

Ainda não sei o que fazer da minha vida. As matrículas voltaram, tenho que decidir, tenho que seguir alguma escolha agora. Isso tá sendo bastante difícil... mas na verdade nem pensei muito nisso nessa semana, pra falar verdade. O ponto é que me escondo aqui nessa casa. Me escondo e ela também me aprisiona e me sufoca. Quando chego aqui, esqueço esse mundo real aí de fora, aqui minhas prioridades mudam, aqui a história é outra, parece outra cidade e outro tempo, outra vida. E quanto mais fico distante desse mundo daí, mais tenho medo de sair daqui. E por isso é tão difícil sair, me tornei prisioneira de mim mesma, eu acho; e preciso sair daqui urgente (aliás, só saindo mesmo).
 Dá um medo tão grande de encarar a realidade. Estou tão podre, tenho me alimentado tão mal, cuidado tão mal de mim, das minhas coisas, como se fosse um cárcere real.
A minha boca parece um túmulo mesmo; sem palavras, fechada o tempo todo, só entra a fumaça e parece que vermes estão esperando que eu abra a boca para que saiam. Minha boca fechada, grudada, os lábios só abrem o espaço de um cigarro e, de vez em quando, abrem pra eu respirar, já que as narinas às vezes não funcionam mais. Quando isso acontece posso sentir o seu cheiro de mofo, o meu cheiro de dentro.
Sinto o cansaço por causa do peso. Carrego tantas coisas, tantas culpas, tanta energia condensada, que impedem o movimento natural do meu corpo. Ando como se houvesse um saco de pedras nas minhas costas, ou como se o saco fosse parte das minhas costas, como se as pedras fossem ossos, músculos e pele, machucadas pelas feridas que não cicatrizam e pesadas por causa tempo. Chego a não poder virar o pescoço, não consigo olhar para trás sem sentir a dor dessa virada, das lembranças do caminho que acabei de passar.
Será que terei que passar toda vez por esse inferno e voltar, sempre que quiser externar algo de lá de dentro?
Estou tremendo. Já há alguns dias minhas mãos e braços fazem movimentos incontroláveis, tremidinhas nos dedos que me fazem parecer uma senhorinha. Talvez esteja definhando, por dentro apodreci. Mas essa tremidinha vem de lá de dentro mesmo, como que da parte mais central de cada parte do meu corpo, como que soltando uma onda de força que eu sinto saindo por todos os meus cantos e me fizesse flutuar por dentro da carne como se aqui não houvesse gravidade; mas que ao chegar do lado de fora, reverbera em tremidinhas involuntárias, sai em espasmos, como se espantassem as moscas. Minhas articulações reclamam.
Tudo é tão difícil e todas as pessoas têm problemas, eu sei. Só que parece que no meu caso, eu já tenho bastante intimidade com eles e toda hora meu pensamento fica possuído por uns buracos de problemas, que eu já pulo neles sem receio algum.
Tudo começou quando os textos foram pedidos. Tenho uma grande dificuldade mental na hora de criar e principalmente desenvolver uma coisa, preciso reservar um grande tempo para colocar a linha numa agulha que seja. Sei lá... Parece tão complicado explicar, também porque está tudo tão interligado, como se todos os porquês estivessem numa grande rede de raízes antigas instaladas na minha cabeça e me ligando a algo por uma luz escura, como se fosse aquele vão do elevador.
Eu me sinto fraca. Não sei o que dizer, porque é uma grande confusão mental. Eu mesma não entendi ainda o que está acontecendo comigo, só sei que não quero continuar com essa sensação ruim, mesmo confusa preciso sair daqui. Quero continuar o que comecei a fazer no início do ano, quero chegar até o fim desse espetáculo, não só quero, como preciso fechar esse ciclo, se não... não sei como serão os próximos ciclos que eu entrar, né? Mas agora é diferente. Depois dessa semana não sou eu quem decide mais, tenho que assumir minha responsabilidade com este grupo, e admito que fui fraca, imatura, mimada e covarde, por ter fugido, por ter me deixado ser sequestrada pelos meus medos e angustias e por ter deixado latejar a dor que tenho sentido. Uma pessoa assim não é de se confiar. Talvez eu precise fugir no dia do espetáculo. Espero que não, espero que essa semana me sirva de vez para tapar essa cratera que eu abri no meu corpo. Por isso, não sei se serei bem vinda na próxima semana, eu abandonei o grupo, totalmente... mas me abandonei também. Me senti mal por não ter textos, por me incomodar com comportamentos, por abrir portas que podem desestruturar a magia dessa oficina.

Acho que a minha maior dor é a da solidão. Dói mais que esse machucadinho aqui no polegar. É que minha vida tá tão desfigurada, tão recortada em pedaços soltos e bagunçados, tão sem caminho claro e eu to aqui sem lanterna, sem telefone, sem amigos para me salvarem... Então eu continuo fugindo e fugindo sempre. Minha casa, minha cápsula, minha célula mãe, que me guardaria e me protegeria, na verdade me engole com todo peso dos móveis antigos, dos livros empilhados e das teias de aranhas; aranhas, besouros, grilos me fazem companhia. Escuto, quando vou dormir, o besouro tentando sair de uma sacola que sem querer entrou, fazendo um som com o de bocas se beijando, os lábios e as línguas e os vácuos de ar se movimentando na minha cabeça enquanto o besouro tenta ultrapassar o fundo plástico do espaço, preso e sem ar. Outras vezes parece o barulho da chuva. Agora se tornou um som ambiente, assim como o do casal de passarinhos, que se mudou faz pouco tempo. Com tanto espaço , quando vejo o ninho dos bichinhos, vejo uma luz diferente na frieza do imenso corredor...
Quanta distância. Minha sobrevivência nesses últimos dias esteve à base de água, doces, baseados... loucuras criadas e alimentadas; parece que meu corpo viveu (e vive) e eu assisti (e continuo assistindo).
Sei não... Já não sei mais o que escrevo. Parece tão difícil chegar até aqui, e agora não sei como continuar... Já são seis da tarde, combinei com meus amigos hoje, mas já não sei se vou mais... Na segunda a Naná viaja, eu preciso encontra-la antes.
As cigarras voltaram a cantar chamando a chuva. Hoje o dia foi mais nublado e úmido, com um ventinho frio bom. A casa por um momento pareceu tão grande e aconchegante pra um ser desorientado... Aliás, acabei de me lembrar das plantas! Esqueci das meninas nesses dias, bosta.
Ai deus.. que frio na barriga agora, sem saber o que fazer.Um querer sem força, uma vontade fraca, um aperto inteiro pulsando.
Parece que aqui não há ninguém além dos bichos e do céu. Aqui parece que vivo só a maior parte dos meus dias, só e distante...
Covarde.
Tantas vidas mais complicadas e eu aqui sôfrega por medos invisíveis e invencíveis, então porque? Onde minha força se esconde?
Parece que o fim do deserto é a parte mais complicada de se sobreviver.
Me dá uma vontade de desistir de tudo.
Mas imagino um futuro tão bonito.
O que estou plantando?
O reverso das coisas.
É que tá nublado e o tempo pode ser cruel...

O acordar é a pior parte. Sentindo que um novo dia começa, minha boca se mexe com dificuldade, parece a boca de um cadáver que acabou de acordar do outro lado. Os olhos sujos só enxergam embaçado o borrado da vida...  É dia de recomeçar, mas parece que minhas partes pouco se importam. O que vale é satisfazer os sentidos, sempre.  Por isso vivi como uma mendiga, sem banho, sem cuidado, sem nada, abandonada aos próprios pensamentos. O primeiro cigarro dia já foi. Esse primeiro é sempre o melhor, ele adentra meu corpo aos poucos, como se fosse penetrando as partes, uma de cada vez, e acordando minhas células vendidas para que continuem o trabalho sujo.
Sinto que preciso escrever rápido, estou ficando nervosa. Me senti estranha depois de ter escrito tudo isso aí de cima ontem. Hoje já é domingo, são dez pras onze da manhã. Acordei sentindo uma inquietação, essa desses últimos dias. Mas hoje foi diferente. É como se eu tivesse despejado uma parte desse sentimento aqui nessa folha e a parte que continuou em mim vai se multiplicando infinitamente; e até eu conseguir tira-la toda de mim, e se isso for possível, no me transformarei? É como se essa sensação fosse um verme que ficasse me mastigando por dentro...
Minha perna não para de balançar. Parece que to ficando descontrolada...
Eu to querendo me acalmar, mas a única maneira que vejo é me emporcalhando mais uma vez com aquela droga. Um corpo viciado é o pior corpo. Por que ele vive, ele faz a vida que ele quer, ele se satisfaz e a pessoa só assiste, vê sem poder, sem força nenhuma, talvez nem perceba... Não posso chegar a esse ponto. Parece que a qualquer momento minhas mãos vão parar de me obedecer, que minhas pernas vão sair caminhando sozinhas, me levando pra onde elas quiserem ir, e eu já nem poderei falar, por que minha boca estará muito ocupada tragando todos os cigarros que aparecerem na minha frente.
Alimento meus vícios sempre. Cuido deles para que no futuro eles cuidem de mim.
Não consigo parar de mexer minhas pernas... elas fazem com que eu escreva mais rápido também... parece que preciso de alguma coisa, se não meu corpo não resgatará serenidade nunca.... que falta de controle, que compulsão....
Vou abastecer de calma minha carne poluída pela vontade de viver presa.
Acrodei tão desarvorada, morrendo de sede de fumar. Meu todo corpo treme.
A casa é uma grande gaiola, assim como o meu corpo, que me aprisiona de uma forma tão completa que facilmente me faço rendida, me transformo escrava dos fáceis prazeres da carne, me empapuço de falsos aperitivos e tóxicos baratos, e afundo, perco o ar e quase morro. Minha cabeça pesa tanto. Tenho a sensação de que ela vai tombar a qualquer momento. E também sinto uma dorzinha aqui no pé da barriga mais pro lado direito. Isso é resultado da péssima alimentação dos últimos dias. Uma descarada falta de amor próprio. Afastei-me momentaneamente de todo resto que não fosse o vão que eu entrei e me perdi.
Bom, agora já estou com menos nuvens no meu pensamento, mas ainda estou angustiada e inquieta, embora agora mais calma, por ter fumado. E, sim. Eu sei que fazer isso blá blá blá. Ahaaa... tá vendo? Parece que estou conversando com meu subconsciente. Quer dizer então que eu me perco e me escondo ao mesmo tempo? Mecanismo de defesa. Acho que eu, na verdade (que mania de falar, na verdade), faço isso mesmo. Fujo, me escondo, me perco e desapareço. Só eu posso me colocar e me tirar daqui.
Não imaginei que fosse ser tão bom estar escrevendo isso. Acho impressionante como que as palavras aparecem, sem medo. Parece um refúgio. Mas, quando penso em falar vem um frio, um aperto subindo, arrepiando da coluna até a garganta. Só a fumaça pra mandar isso de volta. Já se passou uma hora. Por que tão pouco tempo em tanto tempo... tão pouco tempo pra mim... Parece que eu só não vou fumar quando não tiver mais o que fumar.
Sinto minha mente funcionar. Sinto como se líquidos se movessem dentro da minha cabeça, aliviando toda a pesada concentração que permanece acomodada.
Escovei agora os dentes. Que coisa... De súbito resolvi escova-los depois de mais de trinta horas insistindo naquele gosto amargo de podridão que sentia. Minha trajetória como mendiga em casa está chegando ao fim. No primeiro toque da pasta de dente na minha gengiva senti um velho frescor conhecido, nas próximas passadas da escova respirei aliviadamente com a boca, agora como se agora o ar passasse livre daquela saliva suspeita instalada entre os meus dentes. E lá no fundo, tão longe e escondidos os últimos dentes, ao serem cutucados provocaram um grande abalo na estrutura toda do meu corpo e lá de dentro quase subiu uma onda quente, berrando pra todas as paredes do banheiro. Segurei com a respiração. Continuei escovando mais rápido toda a boca não mais fétida, e que logo ficaria fresca como o ar que fica quando a chuva molha a terra.  Enquanto escovava, sentia-me como uma velha, uma mulher envenenada pelo tempo, deformada por dentro, com uma invisível sombra monstruosa; e quase vomitando por lavar a boca, por lutar contra o mostro que é o reverso que seu corpo não mostra. Como que tentando domar um organismo mal acostumado e preguiçoso. Era como se minhas mãos brigassem entre si, uma defendendo a levantada rumo a outro destino, outra querendo continuar na imundice mais podre da escolha errada.
Minha perna não para de balançar... E já quero me emporcalhar mais uma vez.

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