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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Textos da Clarice


Primeira Cena Individual
(Entra no palco e caminha em direção ao público afirmando).
-O corpo é inconsciente visível.
(Vai perdendo foco do público concentrando-se nas mãos e tentando relembrar o que disse).
- O corpo é inconssssss...
(Desequilibra para o lado).
-O corpo é consciente visível????
(Percebe que errou, desequilibra para frente, tenta concertar o erro e toma impulso para falar).
-Ooooooo...
(Esquece completamente e cai no chão, se levanta ainda bambeando enquanto diz).
- O corpo é inconsciente, é fluído, poético , imagético...
(Vai passando a mão pelo seu corpo regozijando, enquanto repete a fala brincando com variações das três palavras).
- O corpo é inconsciente, flui, faz poesia, faz imagem...
(Mão direita começa a bater na mão que acaricia, vai levantando, uma mão vai dizendo não enquanto a outra bate a abaixando. Um lado argumenta com o outro, enquanto a voz vai se alterando).
- O corpo é sim inconsciente, livre, o corpo é...
(Engole palavra, reflexo dessa no ombro que treme. Como se voltasse a si diz).
- O corpo é inconsciente visível, podendo agir também conscientemen...
(É interrompida, reflexo da perna para trás. Tique no pé, tenta pisar em cima do pé para para-lo).
-O corpo é cons-cons-ci-ci...
(Corpo começa a tremer, cosnciêcia tenta controla-lo).
-O corpo é consci, consciente, consciente! O CORPO É CONSCIENTE!
(Após o grito o corpo para, normaliza respiração. Manipula mão, joelho e pé).
-Carprotula metatarso.
(Continua repetindo, corpo começa a não responder gradativamente, tenta chamar partes em vão, língua começa a prender. Há uma paralisia total que a faz numa tentativa de andar tropeçar e cair no chão. Ao cair inspira profundamente com a boca aberta, começa a deslizar pelo chão como se segurasse uma corda, meio que em devaneio).
- Tinha um buraco no meio do peito, ali o órgão pulsava exposto enquanto respirar era cada vez mais difícil, mas de alguma forma gostava do ar que batia ali...
(Faz três rolinhos, como se fosse pega por um redemoinho e em seguida levanta-se com braços em forma de cruz.).
- O corpo é inconsciente (força puxa braço para um lado) e consciente (força puxa para outro lado), visível (puxa para outro lado) e invisível. O corpo é...
(Força puxa plexo, aos poucos as palavras começam a ser puxadas da boca e sendo pontuadas no ar, depois orquestra palavras até o final onde abre os braços que nem um maestro e finaliza música).
Texto anterior à primeira cena coletiva
Meu corpo é feito de linhas cor de sangue, fios de veias. Meu corpo sente mais do que consente, reage constantemente e o que ele sente ele se torna, meu corpo sente o vento e o vento flui no sangue e pelo meu sangue expande. Meu corpo pensa que não se tem limite, mesmo tendo ele age como se não houvesse o limite da matéria. E tem medo de ser só esse corpo, de se restringir a Clarice, meu corpo por mais seguro tem medo de estar só. Quando eu me toco tenho certeza que existo, sou além de um reflexo ou de uma foto, minha pele responde ao meu toque, meus sentidos reagem a minha existência. Quando me toco sempre me beijo. Por isso meu corpo deseja que você me beije, olhe nos meus olhos e não desvie, somos mais do que um bom dia e tudo bem. Às vezes sei que exagero no desespero de um olhar, mas somos mais do que essa não tocar, não somos? Eu quero que me abracem e se importem abraçar e me importar sem medo, olhar sem ter medo do quanto vai durar, sem desviar, sem desviar, sem desviar...
Clarice César Dias
Primeira Cena Coletiva
(Fotos pelo chão, fios vermelhos entrelaçam o espaço enquanto Carmen e Clarice vêm-se refletidas uma na outra, falam a primeira parte do texto enquanto reconhecem que possuem a mesma estrutura de rosto.)
Meu corpo é feito de linhas cor de sangue, fios.
(A fala da Clarice acelera e ela começa a andar em círculos enquanto Renata venda Carmen.).
Meu corpo sente mais do que consente, ele reage constantemente. E o que ele sente ele se torna.
(Começam a arrumar o varal enquanto jogam com as palavras e as fotos).
Meu corpo sente o vento e o vento flui no sangue e pelo vento meu sangue se expande. Dor, esforço, cansaço, asco, nojo, medo, dor. Amor, saudade, desejo, toque, cócegas, sorriso, amor. Meu corpo pensa que é deus e se eleva ao céu.
(Alguém satiriza a prepotência do corpo pensar que é deus, enquanto uma insiste na afirmação. Começa uma discussão entre elas, um lado acredita na potência do corpo e o outro desacredita, invertendo-se os lugares.)
Pensa que é pequeno e se esconde em si mesmo. Nele cabe tudo e cabe nada. Não posso, não dá, não consigo. De algum jeito dá. E tem medo de mim e tem medo de si, tem medo de ser só esse corpo, se restringir a Clarice.
(Renata se acua em um canto da parede enquanto Clarice e Carmen tentam acalma-la chamando-a de volta. Clarice e Renata começam a se tocar a partir da mão, desvendando o toque em si.).
Tem medo da solidão, do contado e da falta de contato. Quando eu me toco tenho certeza que existo. Sinto que sou eu, sinto que sou ser. É pureza e é leveza, é gentil e sutil. Eu sinto o que eu gosto. Sou além de um reflexo, de uma foto, sou um corpo. Por isso meu corpo deseja que você saiba quando pegá-lo e quando soltá-lo. Sou sua e não sou, sou minha. Meu corpo mostra quem eu sou, mas ao mesmo tempo me esconde. Meus olhos as vezes sei que exageram no desespero de um olhar, mas é porque desejo que você me conheça e me entenda, me apoie, me segure e me apare, mas me deixe cair quando for preciso. Preciso e não preciso, quero e não quero.
(Param de frente para o publico, estabelecem o olhar com alguém da plateia enquanto falam o resto do texto, vão saindo de cena sem desviar o olhar.).
Quero que me beije que olhe nos meus olhos sem ter medo do quanto vai durar, sem desviar, sem desviar, sem desviar...

Carmen, Clarice e Renata.
Segunda Cena Individual
(Deitada no chão imóvel, diz o texto abaixo).
Meu corpo me permite estar parado, estagnado, silenciado, abortado e emudecido.
 (Vai repetindo a fala enquanto tensão vai crescendo, levanta os braços e o tronco e percebe a possibilidade de tocar algo que parece não ser ela própria, no caso os dedos de seus pés, se esforça ao máximo para tocá-los, porém quanto se aproxima do toque seu corpo chicoteia levando os braços para longe dos pés novamente. Fica novamente imóvel abalada pela tentativa frustrada).
Meu corpo me permite a solidão.
(Após algum tempo parada em solidão começa a buscar os pés novamente, andando no chão em espiral que vai acelerando junto com o texto, - Meu corpo me permite estar parado, estagnado, silenciado, abortado e emudecido, quando chega ao ápice corpo chicoteia novamente. Continua o texto enquanto tenta fixar o olhar em meio à tontura causada pela espiral).
Meu corpo me permite a solidão.
(Vai falando esse texto em uma tentativa de se convencer, ao olhar pra frente percebe a possibilidade do abismo, aponta na direção enquanto o visualiza e fala pausadamente).
Meu corpo me permite o abismo...
Segunda Cena Coletiva
(Escondeu-se enquanto ainda tinha tempo, por mais difícil de respirar tinha certeza que ali era o local mais seguro de estar.)
Meu corpo me permite estar parado, estagnado, silenciado, abortado, emudecido.
(De repente ouviu seu nome ecoar por toda sala, como se fosse possível sua existência ocupar todo aquele espaço, estremeceu e como uma oração repetia.)
Meu corpo me permite esquecer, meu corpo me permite te esquecer...
(Ele insistia no grito, que se tornava cada vez mais próximo, seu corpo a impedia de entender o porquê, porque ele continuava a gritar mesmo depois de tantas desistências.).
Meu corpo me permite te trair, magoar, decepcionar, abandonar, machucar. Meu corpo me permite ser racional, ponderada...
(Tentava se convencer a respeito da situação, em um súbito a voz dele lhe pareceu mais baixa e a solidão por um segundo foi tanta que pareceu insuportável, saiu daquele buraco imundo às pressas, o nome dele saiu de sua boca como um rasgo, as silabas Correu, sem conseguir distinguir direito o que levava seus pés a se movimentarem, procurou ele entre as fendas, viu as costas de um perfil que pareceu o dele e falou tão rápido quanto pode, antes de sua coragem se esvair.).
Marcelo, meu corpo me permite aceitar. Ser o amor da vida dele, meu corpo me permite te dar dois filhos.
(Riu do absurdo que acabará de falar, mas logo constrangeu-se ao perceber que havia se enganado de pessoa. A voz foi perdendo o tamanho, pediu desculpas enquanto se afastava, percebeu que as pessoas presentes a olhavam de uma forma estranha, olhares que pareciam decupá-la. De forma que ela julgou ser discreta escondeu-se novamente naquele pequeno canto.)
Meu corpo me permite a solidão.
(Rezou novamente essa frase em vão, tentando se convencer, de repente em meio a ausência ouviu um chiado e antes que sua mente pudesse controlar qualquer impulso gritou)
 -Oi.
(Nenhuma resposta, mas ainda ouvia algum som, insistiu.)
 -Oi, oi, oI, OI!
(Ouviu um “oi” de resposta, e em um alívio pode respirar novamente. Respondeu tímida, em tom baixo, quase sussurrando, mas da forma mais corajosa que ela havia feito em toda vida.)
-Oi, qual o seu nome?
-Marcelo. E o seu?
-Clarice.
(De repente conseguiu ver que sem pudor ele se expôs a claridade, estendeu a mão e a convidou para fora, no que parecia ser a casa dele.)
-Vêm.
(Tinha um pouco de medo da claridade, mas ficar ali sozinha lhe pareceu naquele momento insuportável, saiu se arrastando ainda tendo certeza de que estava no chão, assim não tinha tanto risco de cair...Em um gesto tímido perguntou)
-Ei, o que vem depois da entrega?
- O abismo
(Falou ele enquanto entregava seu corpo em queda livre. Seu sorriso pareceu ainda maior, o abismo lhe parecia assustador, mas ele estava tão confortável com tudo aquilo, viu a mão dele estender no impulso o segui e quando viu já estava em uma armadilha, muito longe de seu esconderijo, mas não se importou, pelo menos não naquele momento, ele subira alto, alto demais para ela, pensou em tentar impedi-lo, mas achou tão bonito que quis só olhar, deixou pra pensar mais tarde. E perguntou sem pensar, apenas deixando as palavras fluírem da boca.).
-Ei o que vem depois do abismo?

Terceira Cena Individual
(Está inconsciente até que uma fisgada o olfato captura algum cheiro, o cheiro está por todo seu corpo tanto na pele quanto na roupa, sobe pelas pernas e passa de um braço ao outro até chegar ao antebraço onde está bem mais forte, beija o ponto até a extensão do dedo mindinho, quando termina desperta de seu delírio).
É que ainda tem o gosto dele.  O cheiro. Eu nem gosto tanto dele, é só o cheiro, o gosto que não sai da boca. Eu já lavei, mas não sai, não sai...
(Limpa o cheiro uma vez, calmamente passando apenas uma mão. Depois limpa a segunda vez passando a mão duas vezes pelo corpo, na terceira se agonia e rapidamente tenta limpar todo o corpo, quando chega ao ápice para e respira profundamente.)
 O problema é essa febre que não passa, troquei até o ventilador aqui de casa, mas não passa. O problema é o desejo que nunca caba em si, sempre tão além, tão além de mim.
(Mão vai subindo pela coxa até chegar sutilmente na virilha, quase desliza, balança um pouco e retorna ao estado consciente.)
Talvez um ar condicionado. Só não dá para viver assim, com o corpo em febre, febril, ardendo enquanto venta lá fora, queimando enquanto chove, queimando enquanto chove.
(Mão sobe novamente pela virilha e em um deslize vai por todo corpo, fecha os olhos enquanto cede novamente ao delírio.).
O problema é que minha carne é morna e quando eu inspiro eu me afogo.
(Olhos fechados, mãos tampando o rosto, enquanto vêm à memória latente.)
 Ele me disse que era só fechar os olhos, que se eu fechasse os olhos seria como se ninguém pudesse me ver. E lá eu dançava tão livre, tão livre...
(Voz vai ficando baixa e em um sussurro começa a cantar languido enquanto a música vai ganhando força junto com seu deleite.).
A minha carne é de carnaval o meu coração é igual.
Toques- Experimentação 02 de Outubro de 2012.
Bárbara e Clarice
A roupa cheira a pele, textura bárbara, se olhar bem de perto nos parecemos muitos, mas é só ter uma pequena distância vejo dois territórios tão diferentes, de geografias tão distintas. Meu dedo implica insistente afundando em sua carne, rogando por atenção, tentando desesperadamente diminuir a distância entre nossos corpos, brigamos e brincamos, em transferências rápidas e simples, somos crianças novamente, descobri até que posso modelar seu rosto com minha mãos, sendo quase como Deus. Me apego a carne que não é minha, e invado  o território que não é meu, me instauro, detenho o máximo que posso com as mãos, os pés, o tronco, me contorço até me unir o máximo em uma tentativa um tanto grotesca de penetrar e agora estamos tão próximos que já nem precisamos mais olhar nos olhos....
Eu me sinto acalentada quando você me envolve e permite que seu corpo também seja meu.
Eu me sinto desamparada quando não há toque, um segundo de ausência me faz duvidar de tudo.
Eu me sinto inconveniente quando você não reage ao meu toque, o que me convém nem mesmo te afeta.
Eu sinto o rosto arder quando você me estapeia, a dor se dilata no alívio que é saber que você me toca.
Texto extraído do caderno – Devaneio 01
A cada instante sou menos eu e mais universo, é cada vez mais difícil separar meu corpo do que me toca, meu corpo está espalhado por todos os lugares, tudo é a mesma matéria o resto é forma, átomos... Clarice, uma experiência de vida, um instante, uma fagulha no universo, correndo em direção ao tempo, corpos chocam-se, confronto; o domino, no futuro lembro do meu presente, converto as horas, converso com os minutos e em um segundo, os polos se invertem, em um puxão o tempo me paralisa, pa-ra-li-sa... Acordo! Acordo todos os dias e o mundo não é mais o mesmo, ouço aos poucos minhas bases desmoronarem, as pedras do chão se desgastaram, tenho que andar sobre a poeira no ar, minha pele descamando a cada dia, trocando, incansavelmente, incansavelmente meu peito ainda bate, bate ainda a partir do primeiro impulso, desde o primeiro ao último segundo, o mesmo impulso. Brasa, a existência Clarice, brasa... Eu sonho ou realizo?O céu tão próximo, pessoas tão distantes, outros mundos, universos paralelos. Paralelos, retas, curvas... E estou novamente aqui pela primeira vez, um reagente de tempo e fogo, amadurecendo a cada dia e ao contrário do que imaginei não me solidifico, o tempo não firma bases e sim as dilui, a cada dia estou mais vulnerável, minhas resistências se dissolvem e até o mais fraco dos ventos me toca, amadureço, me deixo atingir e desprendo dos ramos, caio no vento, minhas sementes se espalham e não tenho mais dimensão do meu corpo, não controlo aquilo que planto ou colho, não sei aquilo que sou, apenas sou... Ser? Ser é utopia, estar é realidade e estou aqui pela primeira vez novamente, é dia, sol luz concentrada queima a pele, o fogo purifica, o sol me toca, mas quando, quando finalmente irei toca-lo?

Texto extraído do caderno – Devaneio 02
Você reclama que sua mandíbula está doendo, que já mastigou de mais e que a carne perdeu o gosto, diz que o tempero deixa uma sensação ruim na boca e cospe o alimento, não quer engolir pois” é um alimento de difícil digestão”. O seu paladar se acostumou com a mesma medida de sal nas comidas, a ingestão de outras quantidades lhe causa ânsia de vômito. No auge da sua prepotência você diz que já experimentou de tudo, mas eu sei que de fato você nunca mastigou uma carne a ponto da saliva extravazar a boca, a ponto de querer outro pedaço muito antes de terminar a primeira mordida. Critica a falta de sofisticação do meu cardápio enquanto se contenta com o gosto de pasta de dente barata que você comprou na promoção de três por um no supermercado. Não consigo distinguir direito suas palavras, pois parece que sua língua ta atrofiando enquanto sua saliva se torna cada vez mais rala, inclusive na ultima vez que você sorriu tive a impressão que seus dentes estavam amolecendo, deve ser a preferência por sopas e carnes macias. Apesar de todas as outras ausências você continua visitando o dentista regularmente, enxaguante bucal, proteção 24 horas, sem tártaros, sem germes, sem deixar nenhum fio entre os dentes, proteção para dentes hipersensíveis, contra calor, contra gelado, sua boca cada dia mais esterilizada, fugindo do seu gosto, nem suporta mais o próprio hálito, prefere um gosto imbecil de tuti-frutti a encarar o quão forte pode ser o sabor da sua boca, o sabor do que apodrece lentamente em seu corpo. Você sempre preferiu uma vida de “frescor total”, escovando os dentes regularmente após as refeições e fazendo até clareamento para esconder a cor que o cigarro deixa. Usou aparelho, pois sempre sonhou com dentes perfeitamente alinhados, só não imaginou que seu sorriso se tornaria tão frouxo, assim como a sua boca estéril, eu não quero viver desse não gosto, nessa não sujeira, a qual é mais recomendável escovar os dentes para depois beijar, evitando também, de preferência, compartilhar escovas , não, eu desejo provar a comida que salgou, passar horas desafiando meus caninos a rasgarem um pedaço de carne e que de manhã eu seja despertada pelo meu hálito implorando por comida e sei que no final de tudo não lembrarei da variedade de pratos que provei, os sabores mais elaborados, mais terei a certeza de que provar também é deixar ser provado.

 
Pulsão; Surrar. Texto Lucélia e Clarice.

A minha vida inteira eu só fiz apanhar. Falar de surra pra mim é fácil, porque eu posso escolher, se eu fosse contar cada uma passaria o dia todo aqui. Mas tem uma que dói até hoje, feridas que não cicatrizam. Um dia, um amor e uma barra de ferro. Eu apanhava, mas não sabia o porquê, uma surra conversada, (não faço mais, juro que não faço mais, me desculpa). Os vizinhos ouviam por de trás do muro, o socorro tão perto e tão longe. Meu filho assistia, o corpo não reagia mais, a voz adormecida, não doía mais , não dói, pode bater que não dói. Houve um beijo para cada hematoma, lavei-me a água caia em um misto de limpeza e ardor, junto do choro eu engolia o castigo sem ter ideia de qual era a lição que eu devia ter apreendido. Dizem que quando alguém bate é porque ela queria muito tocar essa pessoa, mas não sabe como... E até hoje é como se cada toque que eu recebo também pudesse me machucar.

Cena Coletiva 03
Clarice e Lupe
(Edith Piaf canta no rádio, o homem emoldurado começa a emoldurar formas enquanto ela percebe que a meia calça não esconde completamente sua barriga. A imagem começa a desagradar e ela se afasta do espelho conforme essa inquietação, enquanto o homem continua persistente em desenhar formas, aproximando-se do espelho. Ele muda seu foco para presença dela enquanto continua em seu desenho sendo atraído pela volúpia do quadril e a apertando enquanto ela se afasta. Ambos se encontram de costas, com corpos próximos, mas com a impossibilidade do olhar, se tocam, com mãos passeando por coxas, orelhas, mandíbulas, braços, sexos até afastarem-se apenas soprando um ao outro até que um grito sai desesperado da boca dela. Assustam-se, ambos. Se afastam e se aproximam, afastam e aproximam, até que o movimento gere uma dança, valsam ainda evitando o olhar, mas não evitando que a mão deslize pela nádega do parceiro. Ela sobe suas mãos até os olhos dele até que ele ceda ao movimento e tampe seus próprios olhos, olha em várias direções enquanto ela tenta estar sempre em sua mira, o jogo inverte e ela está de olhos fechados deslumbrada com o que vê enquanto ele observa distante aquele excesso de movimentação. Quando ela abre os olhos se assusta com a imagem que encontra diante do espelho, eles percorrem aquele espaço tentando reconhecê-lo até para cada um de lado de costas para a moldura vazia que se encontra no chão. Tentam vários acordos até finalmente virarem e pegarem a moldura, colocando-a de frente para plateia e se encaixam um do lado do outro preenchendo o espaço vazio do objeto.).
-É...a gente não combina.
- Combina sim, é só dá uma ajeitadinha.
- Você acha?Eu te acho muito grande.
(Abaixa enquanto espreme seu corpo.).
-Mas eu posso ficar menor olha, ficou ótimo.  
-É... E eu posso ficar maior
(Abre os braços ocupando boa parte do quadro.).
-Isso aumenta as mãos. Viu? Muito bom.
-É...Não sei. Eu acho que você tem muito cabelo.
-Ocupa muito né?
(Prende o cabelo, enquanto segura a moldura com uma só mão.)
- Pronto ótimo. Ta confortável pra você?
-Tá ta sim.
(Olham pro retrato.)
-Ainda te acho grande.
-Droga. Calma ai. E se eu ficar aqui atrás, tipo uma grande mulher por de trás de um grande homem. Ai ninguém percebe.
-É, pode funcionar, e eu posso ficar maior ainda... Você pesa quanto?
-Como assim? Que isso tem a ver?
-Ué, to perguntando quanto você pesa.
- Ah...uns 60.
-60? Olha sua bunda, só ai tem 60.
- 60...Eu tenho muito músculo. E você pesa quanto?
-53?
-Pois é, eu peso isso ai entre 53 e 60.
-Sei...
-É bom ter algo que demonstre afeto.
-A mão!
-Isso, seguramos a mão assim, tá ótimo.
- Gostei, vou sorrir pro rosto ficar maior.
-Legal, eu to sorrindo também.
-Mas ai eu não gosto sua boca é muito grande.
-Ah, então um biquinho.
-Isso.
-Ah tá ótimo, minha mãe vai adorar.
-É acho que agora foi.
(Olham fixos a imagem refletida que constituem.)
-Foi?
-Foi.
-Então tá, tchau.
-Tchau.
(Sai cada um para um lado.)
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Experimentação em Grupo
(Um carro de supermercados carrega pernas, braços, cabeças, dedos, antebraços, cabelos, punhos, troncos, seios, pênis, pés e outros resquícios humanos, um homem empurra o carrinho, lembrando-se de desviar das paredes só depois de bater o carrinho nelas.).
Você pode me dizer o que eu sou? Prego, pasta ou coisa de comer? Se eu vivo no lixo eu sou o que?

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